Flagrante delito de encantamento
Nós estávamos num jantar e, dentre uma garfada e outra, meu olhar passeava pelo meu fichário de couro; estava a estudar para o Exame da OAB. Sophia, paciente, me pediu presença enquanto estivéssemos à mesa; disse que, em breve, tudo isso acabaria – e poderíamos, enfim, aproveitar a companhia um do outro. Querendo fazer parte da minha vida de alguma forma – e, é verdade, por também ser da área – a minha namorada sugeriu que estudássemos juntos. Defendeu a ideia como uma advogada e, com uma oratória impecável, fundamentou a sua tese com base numa pesquisa científica falando sobre as formas de estudos e a absorção de cada uma delas; e disse que, ao ensinar, a absorção era a maior de todas.
“Pelo fato de o nosso tempo ser escasso, nem tudo merece a nossa atenção; imagina se déssemos trela para absolutamente todos os problemas que vez ou outra nos invadem? É por esse motivo que o Direito Penal só se preocupa em tutelar as questões sociais mais relevantes. E, quando há a presença do princípio da insignificância, isso acarreta na atipicidade do fato.”
“E o que é atipicidade?”
“No Direito Penal, tudo começa com o chamado fato típico; trata-se de uma conduta humana que se encaixa perfeitamente na descrição de um crime previsto em lei. Para que um fato seja considerado típico, é preciso que alguém tenha praticado uma ação ou se omitido de forma voluntária, que essa conduta tenha gerado um resultado; como, por exemplo, a morte ou dano a alguém. É preciso também que haja uma relação de causa e efeito ao que está previsto na lei penal. Digamos que, enciumada, você acabe atirando em mim. Há uma ação (o disparo), um resultado (morte), um nexo causal (o tiro que causou a morte) e tipicidade – pois o ato se encaixa no tipo penal homicídio.
Um fato atípico é aquele que, embora exista no mundo real, não corresponde a nenhum tipo penal ou, quando corresponde, é tão irrelevante para a ordem jurídica que não justifica a intervenção do Estado. Em outras palavras, não basta que alguém faça algo errado; é preciso que esse ‘algo’ esteja descrito na lei penal como crime e que tenha relevância social.
Quando falta qualquer elemento do fato típico – ação, resultado, nexo causal ou adequação ao tipo – não há crime. Além disso, mesmo que esses elementos existam, precisamos analisar também a ilicitude e culpabilidade. Só é considerado crime quando um fato é considerado típico, ilícito e culpável.
Se, por exemplo, você pegasse a minha caneta por engano e me devolvesse logo em seguida, tecnicamente houve uma conduta. Mas não houve lesão significativa ao bem jurídico protegido. Logo, é um fato atípico. O Direito olha, suspira e segue em frente.”
Sophia, que tinha um talento irritante para conduzir debates jurídicos como se estivesse numa sustentação oral, concluiu que, assim como no Direito Penal, na vida também precisamos aplicar o nosso próprio ‘princípio da insignificância’. Nem tudo merece processo, audiência ou recurso.
“Poeta, eu te roubasse um beijo, você aplicaria qual princípio?”.
Sophia soltou a frase com a maior naturalidade do mundo; executou flerte com o dolo de quem sabe muito bem o que quer roubar – o nexo causal fora de uma inteligência que mexia comigo mais do que eu era capaz de admitir. Respirei fundo para ganhar tempo, fechei o fichário devagar como quem encerra uma audiência antes da sentença.
“Depende da dosimetria que for usada na ousadia do ato,” retruquei a beber mais uma taça de vinho. “No nosso caso, eu aplicaria o princípio da intervenção mínima.”
Com aquele jeito provocador que misturava inteligência e deboche, ela riu. Inclinou-se sobre a mesa como quem acabava de ganhar a réplica.
“Então você está dizendo que o Estado não interviria?”
“Exato. Deixa que, na hora certa, nós mesmos iremos colocar o Estado na nossa história quando eu for colocar uma aliança no seu dedo. Um beijo roubado, a depender do caso, é apena um lembrete de que a vida não se resume a habeas corpus e tipicidade penal.”
“Poeta, você tem um talento irritante para transformar qualquer coisa em tese jurídica,” ela disse, mordendo a borda da taça de vinho, como quem ensaia, a nível inconsciente, a sustentação oral de mais tarde.
“E você tem talento para criar casos hipotéticos tentadores. Em prova, marcaria a alternativa ‘não cabe ação penal’.”
Como quem dá uma cartada final, Sophia se inclina com os cotovelos sobre a mesa: “Então, por uma questão de coerência jurídica, se eu cometesse esse pequeno ‘ato’, você não recorreria, certo?”
“Não, mas faria constar em ata que o beijo foi devidamente apreciado. A depender do contexto e da vontade livremente manifestada pelas partes, um gesto assim pode não atingir a gravidade necessária para a incidência do Direito Penal. Princípio da intervenção mínima, ausência de lesividade e, nesse caso específico, atipicidade material. Caso encerrado.”
E, antes que o raciocínio jurídico tivesse tempo de se reorganizar, ele atravessou a linha entre hipótese e fato, selando a sentença com um beijo. Não havia tipicidade, mas havia flagrante delito de encantamento.