Alamedas do miocárdio
Teu flerte insiste em manter acesa uma chama que nós dois, juntos, concordamos que é melhor manter apagada. Teu gesto, em contraste à fala, se desnuda em outra direção – a literatura é testemunha; meu silêncio, prece. A tua boca desenha um croqui de uma pintura que nunca iremos ver a cor; a minha, cúmplice da tragicomédia em que somos os personagens principais, concorda. Quisera eu que a nossa lírica pudesse rimar sem qualquer censura; que o clímax pudesse jorrar no teu corpo, que as minhas paredes voltassem a ecoar a tua voz.
A vida me ensinou que nem tudo o que eu quero é o melhor e, confesso, que bom – várias foram as vezes em que um caminho mais estruturado se delineou à minha frente após um fim que, a princípio, julguei ser a maior das intempéries. Ainda há resquícios teus num brinco esquecido numa gaveta, nas coisas que acabei por escrever e em uma camiseta que ainda guarda o teu cheiro. Os fragmentos da explosão, infelizmente, não se resumem a objetos; ainda há um pouco de ti nas alamedas que permeiam o miocárdio.
Encontrar-te-ei nas colunas do jornal, nas manchetes e, quem sabe, como operadores do direito, pelos tribunais da vida – talvez até numa sessão de autógrafos de algum livro novo meu, onde teu abraço, mais demorado que o comum, faz a musa da inspiração ficar desconfiada. Em teu íntimo, com os olhos marejados, ficarás a pensar que tudo o que eu te contava lá atrás – em nossas ligações, principalmente – virou realidade, tendo de diferente um único detalhe: a reserva do restaurante que me aguarda após o último livro autografado tem o meu nome e o nome de outra mulher.
Publicado no Jornal do Commercio em outubro de 2025.
Nota: Se por acaso alguém se reconhecer nestas linhas, saiba que a semelhança é mera obra do destino, e ele tem um senso de humor peculiar. A vida amorosa do autor permanece em sigilo absoluto, guardada a sete chaves e um pouco de deboche. O coração, neste exato momento, está de chinelo, camisa larga e zero planos de reabrir inscrições.