Incenso
O incenso foi aceso à meia noite e vinte quase que como num ritual sagrado. Na mesa da cozinha as palavras me invadem e eu as escrevo esperando o dia em que talvez alguém as leia. Dorme no meu quarto uma das mulheres mais bonitas que eu já conheci; o vazio que eu deixei na cama tem um bom motivo e é delineado nas linhas tortas que a minha trôpega agora prosa tece. E eu não sei, de verdade, onde essa coisa toda há de me levar. Eu sei que me acalma e aquece a alma – o que por si só já me basta a viver nesse mundo tão cheio de aflição.
Amanhã é segunda-feira e os afazeres da vida nos engole sem dó, nem piedade. É mais fácil eu voltar para a cama e sentir o perfume dela até o amanhecer, acordar com o braço dormente e sair de fininho para preparar o café. É o que o meu corpo cansado também me pede. Mas não basta, é preciso escrever. Ato este que, aliás, me proporciona uma paz de espírito grande. É como se a tecer as palavras no papel o meu lado do peito incompleto finalmente deixasse a angústia só na poesia e se tornasse, mesmo que por alguns instantes, perfeito.
O meu gato mia. E me irrita. É um miado exclamativo, quase que como uma intimação. Eu não sei o que ele quer porque o pote de ração está cheio e o de água também. A caixa de areia, limpa. Fico aflito. Ele pode acabar acordando a linda mulher que está adormecida na minha cama. Mas ele para, não queria nada além de um pouco de carinho. Deixa-me só mais uma vez e caminha para a sala numa pose de caçador, deve ter visto uma barata, talvez.
A verdade é que mesmo escrevendo, dois e dois por aqui são cinco. Os amigos e a família andam distantes, o trabalho anda exaustivo e o meu porto seguro tem sido deitar nas coxas da garota que eu gosto enquanto conto estrelas. Diante do caos da vida, tudo o que um poeta precisa é de uma mulher compreensiva para enchê-lo de amor para enfim, juntos, dominarem o mundo.