Segundo Sol
O par de brincos sob a escrivaninha me lembrou uma música da Duda Raposo. A luz indireta do abajur, a iluminar uma pedra branca, traz um ar dramático à cena. Parece que cada detalhe ao meu redor carrega um significado.
A caneta, à espreita, aguarda a epifania. Se a pena soubesse como andam as alamedas do meu coração, não esperaria por verso algum. A musa, após uma série na tevê, repousa na minha cama; mal tem noção a loira cacheada da metalinguagem em curso: meu sonho, na minha cama, a sonhar.
O nosso primeiro encontro foi recheado de simbologia. O centro espírita, o café e o encaixe do nosso beijo. Mal sabíamos que estávamos escrevendo a primeira página de um livro tão bonito. Há qualquer coisa de eloquente quando a nossa dialética entra em curso; poucas pessoas conseguem me compreender.
Mas tu compreendias. E não era por falar a mesma língua — era por decifrar o que vinha antes da palavra. Tinhas um jeito de me olhar que me silenciava. Às vezes, eu dizia que estava tudo bem só para te ver discordar com aquele jeitinho debochado de quem sabe onde dói. Tu sabias, desde o início, onde aperta o meu sapato e onde alivia a alma. Como alguém assim consegue me ler tão bem? Ainda mais agora que os meus poemas escorrem para os cantos da cama e os meus cafés esfriam enquanto penso em ti.
O silêncio entre a gente é confortável. Tu lês Clarice deitada de bruços, enquanto eu escrevo crônicas que talvez nunca leias — ou que leias e não comentes, só pra manter o mistério. Gosto disso em ti. Há um quê de enigma no modo como me atravessas e, ainda assim, segues inteira.
Volto a encarar-te. O brinco continua ali, como se marcasse território, como se dissesse: “estive aqui”. Estiveste, sim — e continuas. A tua ausência, mesmo quando longe, preenche. E quando estás aqui, tudo se ajeita.
É como se a tua presença tivesse realinhado a órbita de planetas que eu nem sabia que estavam fora do lugar. Como se, com o teu segundo sol, viesse à tona um universo novo e o meu caos, enfim, tomasse outra forma com a tua luz. Hoje o poema veio e, claro, tinha alguma coisa de ti. Como, nos últimos tempos, quase tudo por aqui.