Crônica

Quando o congelador virou relicário

julho 9, 2025 · Pedro K. Calheiros

Hoje cedo, enquanto misturava leite em pó com farinha láctea, me peguei pensando em ti. É engraçado como certas lembranças se escondem nas coisas mais simples. Concluí, sem querer concluir, que viramos isso: dois desconhecidos que sabem demais um do outro. Existe essa fantasia boba de retorno, como se revisitar o mesmo lugar trouxesse de volta o que fomos. Mas a gente sabe. Não traz.

O gatilho foi o açúcar no congelador. Eu sei, é estranho, mas eu guardo lá. Ao abrir, vi uma tigela de vidro. Dentro, o resto de um molho de tomate que tu fizeste num dos nossos aniversários. Parecia que parte de nós estava ali, esperando continuar uma história que já terminou. Tirei o pote, deixei sobre a pia, escrevi um bilhete pedindo pra diarista jogar fora quando descongelasse. E pronto. Fim.

Na última vez que nos falamos, as cartas fizeram sentido. Tudo que eu vinha fingindo não ver se escancarou. Os sinais estavam vermelhos há tempos, e eu teimando em atravessar. A mulher que eu amei ficou lá atrás. A que ficou no lugar, infelizmente, me dá essa sensação amarga de desencanto. O que ainda me levava a ti era só a lembrança de um tempo bonito. E bonito mesmo, mas que acabou. Prescreveu.

Perder a admiração é foda. Fica a dúvida: tu sempre foste assim e eu que não via? Ou fui eu que projetei demais e te pintei com cores que não existiam?

Me alinhando aos meus planos, me afastando do caos, percebo que teu movimento é o oposto. Tu te aproxima do que te afunda, e eu não posso ser boia pra quem não quer nadar. Não é minha função te resgatar. Principalmente quando já entendi que o melhor pra mim… é seguir.

Ainda te guardo no campo do afeto. Tem carinho, tem vontade de que tu melhore, tem um sorriso solto quando lembro do que fomos. Mas só isso. Porque tem coisa que, quando estraga, a gente precisa aceitar que não tem conserto e seguir mesmo com saudade.