Crônica

Inteligência artificial

dezembro 19, 2022 · Pedro K. Calheiros

Pedi para a Alexa tocar uma música e ela colocou a playlist que a gente usava pra transar. Um sentimento estranho me dominou o peito, afinal, eu nem lembrava que você existia. Pedi pra Alexa desligar essa porra. Ela entendeu “Já arrumei a coisa toda!” e abaixou o nível da luz, colocou uma música lenta e completou: “Aproveitem o jantar!”.

Não sei se jogava ela pela janela ou o quê. Parecia que esse dispositivo de inteligência virtual estava disposto a me desafiar. Programei essa série de rotinas na época em que estávamos juntos e nem lembrava que existiam.

Às vezes sinto que o Universo nos testa para ver se aprendemos a lição. Quando eu vou embora, não há depois. Quando o leite derrama (e eu não estou falando na cama) não há historinha de tentar juntar gota por gota com a língua. Uma vez quebrado, um copo nunca será o mesmo. E fim. Mas graças a Deus eu passei no teste. Falei, mas dessa vez firme: “Alexa, coloque jazz!”. E assim foi feito.

 Organizei a mesa para dois mesmo que o jantar fosse comigo mesmo, acredito muito que devemos deixar espaço para alguém que ainda não existe, mesmo que nos detalhes. Espaço como estacionar de um lado da garagem como se o outro fosse de alguém, dormir num lado específico da cama, essas coisas. Pode parecer loucura, mas funciona. Não é como se eu estivesse procurando por um amor. É como se eu tivesse deixando um espaço para caso ele surja. O amor quando se procura nunca se é encontrado, muito bem, obrigado – já dizia o poeta.

  Acendi um incenso, abri a garrada de vinho, servi o meu prato, pedi para a Alexa aumentar a música e comecei a pensar. Que estranha essa coisa da existência, sobretudo para quem faz arte, cada minuto é uma experiência e quando temos a percepção certa das coisas, com o toque certo acabamos por transformar em arte. Eu faria mil poemas se pudesse, mas como não sou poeta, me limito a apreciar.

Ri com gosto a lembrar do incidente de há pouco com a Alexa, a situação me trouxe à tona sentimentos estranhos. Continuei a comer e o celular notifica. Nem sei onde está. Outra mensagem chega. É Carolina, pergunta onde estou. Digo que estou em casa, que fiz um jantar e que ela pode vir se quiser. Ela diz que chega em dez minutos e menciona como quem não quer nada que estará usando aquele vestido vermelho que ela sabe que me deixa louco.